sábado, 14 de agosto de 2010

Companhias


O sol era uma incógnita naquela tarde de primavera. Desobediente à estação, o astro-rei parecia querer derreter o solitário cachorro abaixo de si — o pobre animal agora sabia o que era ser um marshmallow próximo da fogueira.

Correndo para baixo de um toldo, o cachorro viu seu reflexo na porta de vidro. Compreendeu que aquele não era outro cachorro, mas a imagem dele mesmo. Talvez fosse o único cachorro racional do planeta.

Imóvel, permanecia olhando para o vidro. Tinha o reflexo como única companhia e vice-versa. De repente, notou que já não era a única companhia do reflexo. O vidro passou a refletir a imagem de uma menina, que parecia estar em sua décima primavera.

Sentada no banco da praça, a garota devorava um sorvete — embora, pelo rosto sujo, fosse mais sensato concluir que o sorvete a devorava. Talvez nem tivesse se dado conta, mas naquela tarde completava mais um mês de vida, mais um longo mês de sua curta vida.

Como todo aniversário, aquele precisava de um presente. E ele estava bem a seus pés: o cachorro mostrava a língua e abanava o rabo. Queria sorvete? Fazia da cauda um ventilador? A menina considerou esta outra incógnita daquela tarde.

A menina olhava para o cachorro; o cachorro olhava para a menina; o sorvete olhava a cena e se derretia.

Uma mãe apareceu e puxou, pelo braço, a menina que se preocupou somente com o sorvete e ignorou aquele que lhe era um possível presente. O cachorro se viu obrigado a voltar para a transparente companhia da porta de vidro.

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