sábado, 19 de março de 2011

Anestesia


Estava de boca aberta. E não era por aquela que fazia meu queixo cair; era por outro doce. Um que com certeza deixou uma pequena parte sua num estreito intervalo entre dois molares — lugar onde nem a escova nem o fio dental alcançaram — e resultou numa enorme cárie. Na verdade, essa era apenas uma das cinco desintegrações contidas em meus dentes.

Numa última consulta que havia feito à dentista, há exatamente três dias, ela resolveu começar a tratar dessa tal cárie. Primeiro, anestesiou o local; em seguida, com um aparelhinho de barulho perturbante, abriu uma cavidade no dente, onde aplicou a tão famosa guta-percha, que muitos chamam de “massinha” ou algo do gênero.

— E então, doeu? — perguntou assim que tirou o sugador da minha boca.

— Não. Não senti absolutamente nada — menti.

— Ótimo! Eu coloquei uma pré-obturação. É temporária, mas deve aguentar por cerca de duas semanas — como é possível perceber, ela também mentiu.

Agora, após a queda da massinha, a doutora pôde enfim perceber que meu dente pedia desesperadamente a substância metálica, a fim de evitar que outros resíduos adentrassem a concavidade. E foi trazendo a imensa seringa na direção da minha boca, que ela aconselhou:

— Não vai doer nadinha — mentiu outra vez. — Mesmo assim, esqueça a seringa e pense em outra coisa.

Visando que a doutora não era nem um pouco animadora, tentei desviar meus pensamentos. Mas não sabia em que me concentrar... Nos pedreiros que construíam um novo prédio, que podia ser visto através da janela do consultório? Na chatice que seria a apresentação de balé de minha irmãzinha, logo mais a noite? Na nova música da minha banda preferida? Foi quando senti a forte picada da agulha, penetrando em minha gengiva, que imaginei um mestre de obras trajando um vestido de bailarina e dançando hip hop. É bem provável que eu tenha sido o primeiro paciente a rir, enquanto era anestesiado.

— Prontinho! — anunciou, após a utilização da pomada antibacteriana, da resina dentária e do laser secativo.

Meu maxilar agradeceu. O coitado não tinha mais forças para se manter aberto.

Já estava prestes a sair do consultório quando algo tremeu em meu bolso. Era meu celular anunciando a chegada de uma mensagem de texto da garota que eu amava, mas que nunca me dera bola.

Ao esbanjar um breve sorriso com o SMS, a dentista, também sorrindo, me cutucou:

— Alguém especial?

— Não. É apenas uma amiga. Nada mais.

Ficamos quites, de novo!

Com a sensação de boca inchada, o que é mais do que normal ao sair do consultório de um dentista, me despedia da secretária. Nisso, a um asfalto de distância, a menina que tomara conta do meu coração se despedia da manicura e da cabeleireira.

Assim que saí da clínica, ela saiu do salão de beleza. Ambos nos surpreendemos um com o outro. Cruzando a rua, ela veio em minha direção.

Sem dizer uma única palavra, aproximou seus lábios dos meus e deu-me um inesperado e ardente beijo.

No momento, não sabia se ela percebera o quão eu estava apaixonado e quis me dar uma chance, ou se ela sentia o mesmo por mim. Mas não interessava. A única vontade que eu tinha era aproveitar aquele instante, pois ele poderia não voltar a se repetir.

Em suma, tudo seria perfeito, se não fosse o fato de eu não sentir nem meus lábios, nem os dela, devido à anestesia.

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