sábado, 30 de abril de 2011

A Cortiça


Essa de Queirós ficar mexendo apenas a boca foi o principal motivo da confusão. Ele era um boneco de ventríloquo comum até que, em um dia de prateleira, o queixo tomou vida própria e começou a descer e subir sem ajuda de uma mão humana. Criou-se um elevador estampado no rosto.

No abre e fecha bucal, prensava entre os dentes de lenho quaisquer coisas que, ali, se encaixassem. Mascava o vento, mordia o mosquito, mas queria mesmo era prender o dedo do homem que há tanto tempo enfiava a mão por dentro dele.

Estava de madrugada e só se ouvia o estalar de dentes. O movimento repetitivo e imprevisto era tão intenso e fora do casual que, pouco a pouco, provocou uma leve mudança na rotação da Terra. Um terremoto confirmou o desvio no giro do planeta.

As vibrações fizeram com que tudo caísse da prateleira: bola, Queirós, frigideira e até uma garrafa de vinho. No chão, foi mais fácil para a garrafa rolar e chegar perto da boca de Queirós. O elevador facial continuava em funcionamento e, quando a garrafa se encaixou, foi pressionada pelos dentes.

O queixo de Queirós era forte e a garrafa de vinho, resistente. A boca tentava fechar e, de tanto que tentou, conseguiu amassar o vidro da garrafa. Não quebrou, mas entortou. E a pressão do lado de dentro fez cócegas na rolha. Ela tentou se segurar, mas a vontade de rir era tanta que a cortiça pulou deslizando do gargalho.

A rolha podia ter voado para o telhado, podia ter fugido pela janela, porém deu com tudo na testa de Queirós. O boneco de ventríloquo que tinha más intenções ficou em transe, somente a boca continuava se mexendo.

Quando acordou, pensou ser um esquilo. Podia ter fugido para a floresta, podia ter corrido para um buraco na parede, podia ter feito o que lhe desse vontade. Só que a única coisa que conseguia mexer era a boca.

Seu dono entrou no quarto e viu tudo esparramado em cima do tapete. Guardou a bola, guardou a frigideira e guardou a garrafa, mas, quando viu o boneco de ventríloquo que pensava ser esquilo e que não parava de movimentar a boca, teve a ideia de usá-lo na cozinha.

Mascava o vento, mordia o mosquito, mas a principal tarefa do queixo de Queirós — que coisa! — era ser quebra-nozes.

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