sábado, 28 de julho de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: O urso que não era de pelúcia



A escuridão não interpreta palavras,
Mas as paredes absorvem os gritos.
DRAMA, Boneca de Pano.

Imagino como seria um gato, feito eu, usando uma peruca loira de cachinhos. Talvez ficasse parecendo uma princesa dos contos de fadas ou, quem sabe, uma apresentadora de programa infantil da atualidade. Talvez eu ficasse bastante estranho, já que cabelo de gato, para não ser estranho, precisa ser da cor do pelo.

Penso a respeito disso porque quase pertenci a uma família onde todo mundo tinha cachinhos dourados. Na verdade, entrei em uma casinha de palha, achando que ninguém morava lá. Mas, quando já estava dentro, percebi que havia móveis nos cômodos e comida na mesa.

Ouvi um resmungo vindo do estômago e percebi que era melhor aproveitar os quitutes que estavam por ali. Num salto estiloso, subi na mesa. No primeiro prato, havia mingau: era mole demais e estava muito quente. No segundo prato, havia uma rapadura: era muito dura e estava fria demais. Mas, no terceiro prato, havia um pão de ló com cobertura de morango: perfeito, na maciez e na temperatura.

Enquanto eu tirava alguns bocados daquela guloseima, a maçaneta girou e a porta se abriu. Três mulheres haviam chegado, todas as três de cabelos cacheados e loiros. Aquela era a casa das Cachinhos Dourados!

As Cachinhos Dourados eram conhecidas: a mais velha se chamava Sara e sempre levava mingau para as crianças do orfanato; a do meio se chamava Sarali e vendia rapadura na porta das casas; e a mais nova se chamava Saralinda e era querida por ser tão meiga. Elas eram avó, mãe e filha.

Quando me viram, Saralinda sorriu e achou tudo muito engraçado; Sarali deu um berro tão assustado que um pedaço do teto até desabou; e Sara foi correndo pegar a vassoura para me expulsar a pauladas.

— Não atire o pau no gato, vovó! — Saralinda disse.

— Isso mesmo — eu falei. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Explicação de gato é em vão para os adultos. Gente grande não entende língua de gato, da mesma forma que gente pequena custa para entender língua de gente grande. Mas a menina me ouviu, porque gente pequena tem o dom de entender os animais. Ela correu e deu um abraço em mim. Esse gesto fez a avó guardar a vassoura e a mãe parar de gritar.

— Podemos ficar com o gato, mamãe? — ela dizia. — Podemos?

— Mas esse bicho é cego! Ponha pra fora, ponha?

A menina ficou triste e baixou os olhos.

— Mamãe, se eu fico cega, você não me ama mais?

A menina olhou para a mãe, a mãe olhou para a avó, e a avó, que não tinha mais para quem olhar, fez que sim com a cabeça para dizer que eu poderia ficar. Por um estalo de segundo, meu coração bateu forte; eu tinha uma nova família.

Fomos para o quarto, onde fiquei sentado no colo da menina, enquanto ela me contava quem era, onde estudava, o que gostava de fazer e qual era o membro mais bonito da banda de rock que ela gostava. Depois de tudo, quis saber meu nome.

— Eu não tenho um nome — falei.

— Mas todo mundo precisa de um nome. Vou chamar você de Sr. Gato.

A menina pegou uma boneca de pano que estava em cima do travesseiro e nos apresentou.

— Sr. Gato, esta é a Inocência. Inocência, este é o Sr. Gato.

A Inocência também tinha cachinhos dourados, como todas as mulheres da família. Ela usava um vestido branco e me olhava com carinho. Gato também entende língua de brinquedo, e ela me disse, com a linha que formava sua boca, que havia gostado de mim.

O dia virou noite e, em poucas horas, voltou a ser dia. Saralinda acordou para ir à escola, Sarali pegou a cesta com rapaduras para vender, e Sara pegou um machado para cortar lenha. Dessa vez, resolvi acompanhar Sara na floresta.

O machado batia no tronco da árvore umas seis vezes, para que ela caísse. Depois, era só cortar a madeira em pequenos pedaços, para caber no fogão. De repente, ouvimos um barulho. Meu rabo comprido ficou de pé, e os cachinhos de Sara até arrepiaram. Um urso apareceu.

O urso tentou explicar por que estava ali: só queria brincar! Mas gente grande não entende língua de urso, e a vovó ameaçou bater nele com o machado. Ele voltou para a floresta, e nós voltamos para casa.

Não demorou muito, e Saralinda chegou da escola. Tirou os sapatos, jogou a mochila num canto e pulou na cama. Veio me contar como foi o dia.

— O Paulinho disse hoje que o Papai Noel, na verdade, é o pai da gente. Será que é por isso que não tenho um pai? Ele está no Polo Norte, fazendo presentes para todas as crianças do mundo?

Eu não sabia o que responder e preferi dar um miado preguiçoso. Saralinda coçou minha barriga. A Inocência assistia à cena e sorria.

Mais uma vez, o Sol foi embora, para a Lua e as outras estrelas poderem aparecer; mas logo ele voltou e escondeu todas elas. Nesse novo dia, resolvi acompanhar Sarali, na venda de rapaduras.

Para chegar ao outro lado da cidade, pegamos um atalho na floresta. A cesta de Sarali parecia pesada, mas a tranquilidade no rosto dela mostrava o contrário. De repente, ouvimos um barulho, que era o mesmo do dia anterior. O urso apareceu e disse que só queria brincar, mas Sarali se assustou e deu um berro que quase deixou todo mundo surdo. O urso foi embora.

Quando voltamos para casa, Saralinda já estava lá, fazendo tranças na boneca. Quando me viu, me pegou no colo e começou a contar:

— A Cicinha disse hoje que Bicho Papão não existe, que é só o medo que a mãe da gente coloca, pra gente não fazer malcriação e nem ficar acordada até tarde. Mas, se a mãe só quer o bem, ela não ia inventar essas coisas que dão medo, não é mesmo?

Decidi não responder nada e rocei o corpo nas pernas dela. Saralinda achou fofo e foi buscar uma tigela de leite pra mim. A Inocência mantinha o brilho dos cabelos.

O céu escureceu, mas logo voltou a clarear. Era sábado, e eu podia passar o dia inteiro com Saralinda. Ela queria brincar na floresta, mas a mãe disse não.

— Tem um urso muito perigoso circulando por aí. Melhor ficar em casa.

Mas foi só a mãe e a avó saírem que o dispositivo de obedecer às regras se desligou. Saralinda pegou Inocência, pegou uma bola que estava em cima do guarda-roupa e me chamou para ir junto. Não concordei com a saída sem permissão, mas eu era apenas um gato caolho do rabo comprido; não tinha que concordar com nada.

Na floresta, a menina jogava a bola para que eu pegasse, e eu empurrava para Inocência. A boneca era preguiçosa e não jogava de volta para a menina. De repente, ouvimos o mesmo barulho dos dias anteriores. Um urso apareceu, e Saralinda se assustou, mas ficou quietinha, parada, esperando o que ele tinha a dizer.

— Ei, garotinha! Posso brincar também?

— Não sei... Minha mãe não me deixa falar com estranhos.

— Mas menina crescida brinca com urso que não é de pelúcia.

A menina se lembrou do que a mãe havia dito, que o urso era perigoso, mas ele parecia tão carente. Não custava brincar um pouquinho.

— E qual é que é o seu nome? — Saralinda disse.

— O nome não importa. Você pode me chamar de Amigurso.

Eu não gostava daquela história de Saralinda ficar brincando com o Amigurso, porque nem o conhecia. Mas comecei a pensar que, já que Saralinda e Inocência haviam gostado tanto dele, eu é que estava sendo chato demais. Enquanto eles se divertiam, aproveitei para cochilar.

— Socorro! Socorro, Sr. Gato! Socorro!

A voz desesperada de Saralinda me fez acordar rapidamente e me colocar em posição de ataque, com o único olho arregalado e o longo rabo eriçado. O Amigurso já estava distante, carregando-a no colo e levando-a floresta adentro.

Resolvi usar minha agilidade felina para segui-los. No meio do caminho, encontrei a boneca, que provavelmente havia caído das mãos da menina. Não ia deixar que Saralinda perdesse a Inocência; peguei a boneca com a boca e continuei correndo atrás do urso mau.

Cheguei à frente de uma caverna e pude ouvir a voz de Saralinda lá dentro.

— Por favor, Amigurso, não me machuque. Prometo que não jogo mais a bola com tanta força.

Pude enxergá-los em frente de uma mesa cheia de flores. Ele resmungava:

— Agora, você é minha criada. Quero mel! Faça mel para mim.

— Mas, com tanta abelha na floresta, por que precisa que eu faça o mel?

— Porque mel de menina humana é mais gostoso.

Entrei escondido na caverna. Saralinda estava tirando o néctar das flores quando me viu.

— Sr. Gato, você veio! E me trouxe a Inocência de volta.

A menina pegou a boneca e arrumou-lhe os cabelos, que já não tinham mais brilho. Então, chorou de maneira soluçada. O urso ouviu o pranto e tentou agradar.

— Não chore, menininha! As lágrimas vão deixar o mel salgado.

A menina não escutava; continuava lavando o rosto com o líquido que saía dos olhos. O urso tirou um pirulito de morango do bolso e lhe entregou.

— Tome! Vai animar. Pirulito igual o meu, você não encontra em nenhum outro lugar.

Saralinda não queria pirulito; só queria voltar para casa. Mas a Inocência sussurrou algo no ouvido dela, e ela começou a chupar o doce. Tinha gosto de morango, mas era de um morango diferente dos morangos que já havia comido. Ela não gostava daquele gosto; mesmo assim, evitava a cara feia.

Eu queria um plano para tirá-la da caverna, mas não conseguia pensar em nada. O tempo passou e mais uma noite chegou. A menina já tinha feito muito mel e, agora, tremia de frio.

— Venha se deitar, menininha! — o urso disse. — Aproveite que meu pelo é quente e pode aquecer nós dois.

Enquanto Saralinda era abraçada pelo urso, abraçava Inocência. O urso não estava satisfeito em dividir a cama com a boneca e, com uma patada certeira, jogou-a no chão.

A menina deu um pulo e desceu para pegá-la. A patada havia arrancado um dos braços, rasgado parte do rosto e sujado o vestido branco. Uma lágrima quis ver a boneca de pertinho e saiu do olho de Saralinda, que pegou a pequena no colo e suspirou.

— Amigurso, você feriu minha Inocência.

Então, vi que não podia mais ficar parado. Saí em alta velocidade pela floresta e cheguei à casa das Cachinhos com a língua para fora. A avó e a mãe estavam bem tristes, lamentando pelo desaparecimento de Saralinda.

— Veja, Sarali! — a avó disse. — É o gato dela.

— Vamos, bichinho! — a mãe disse. — Diga onde é que a Saralinda está.

Fiz com que elas me seguissem até a caverna. Quando elas viram o animal, Sarali arrancou uma rapadura do bolso e a atirou bem na cabeça dele, e Sara usou um pedaço de madeira que havia por perto para expulsá-lo a pauladas. O urso fugiu.

Saralinda correu para os braços da mãe, numa cena comovente. Comecei a perguntar para ela se estava tudo bem, se ela tinha algum ferimento, se eu podia ajudar em mais alguma coisa. Mas ela parecia não entender nada além de alguns miados. Então, com os olhos ainda molhados, falou à sua mãe:

— Que gato feio, mamãe! Ponha pra fora, ponha?

Vi as Cachinhos Dourados tomando o caminho de volta para casa, até sumirem entre as folhagens. Do meu lado, a boneca estraçalhada era o sinal de que Saralinda havia perdido definitivamente a Inocência.

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