sábado, 25 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Vinte mil réguas submarinas



O importante é ser você.
Mesmo que seja estranho, seja você.
PITTY, Máscaras.

Decidi que queria ser um coala, depois de ter assistido a um documentário na televisão a respeito do assunto. Suportaria até injeções e remédios amargos para modificar o DNA, só para me tornar um ursinho acinzentado fofíssimo que dorme o dia todo e só acorda para comer.

Um dos meus companheiros — que fica comigo, todas as noites, em cima do muro, miando para o além — deu risada e disse que era mais fácil eu atravessar o oceano do que realizar esse meu desejo. Pensei pouco a respeito do assunto, mas o suficiente para aceitar o desafio e afirmar:

— Vou me fazer de gaquático e ser o primeiro felino a descobrir o que há do outro lado do mar.

Gatos morrem de medo de água, ainda mais se ela for salgada e cheia de ondas; mas a vontade de fazer o que parecia impossível arranhava dentro de mim. Vasculhei o depósito de lixo de uma loja de produtos para natação e peguei um equipamento de mergulho, tamanho pequeno, que encontrei jogado fora.

Enquanto as ondas vinham a caminho da praia, fui de encontro a elas, usando os pés de gato para abrir espaço. Senti a água fria e a areia molhada e deslizante ao fundo. Tomei a última gota de coragem que ainda tinha e, evitando tomar as gotas do mar, submergi no Atlântico.

Via os crustáceos fazendo buracos na areia e via ostras saindo das conchas. Quanto mais eu andava, mais afundo eu entrava e mais beleza marítima conhecia. “Espero que não tenha tubarão por esses lados”, pensei enquanto me aproximava de uma curiosa ilha submersa: além de estar debaixo da água, ainda tinha, como cerca, estruturas de madeira que se pareciam muito com réguas escolares.

Procurei a entrada e descobri que o portão, na verdade, era um buraco que ficava entre os números 50 e 75. Em outras palavras, eu precisaria escalar meio metro e passar por uma abertura de exatamente 25 centímetros. Usei as unhas resistentes para subir pela cerca e saltar para o outro lado. Quando caí no chão, dei de cara com uma estrela-do-mar.

— Meu nome é Janaína — ela disse.

Levei um susto tão assustador que berrei; mas o miado virou apenas uma bolha de ar, que vazou da máscara de mergulho e flutuou até a superfície. Mais calmo, olhei atenciosamente para a estrela e percebi que a conhecia de algum lugar. Ela, então, explicou:

— Sou uma estrela que caiu do céu para enfeitar o mar.

Certamente, ela havia sido uma das que conheci na viagem que fiz ao céu quando morri de susto. E, por ironia das circunstâncias, quase que morri de novo; só que, agora, aprendi a controlar o terror que sinto.

Fiquei surpreso ao encontrar alguém conhecido ali, no fundo do oceano, e quis começar a conversar. Antes, no entanto, que eu pudesse mandar um miau, uma sardinha apareceu detrás das algas marinhas e quase se esbarrou em mim. Quando percebeu que tipo de animal eu era, saiu gritando para que até Netuno ouvisse. As outras sardinhas saíram de seus corais desesperadamente e provocaram a maior confusão para ver quem conseguia se esconder do devorado de peixes.

— Calma, gente! — disse Janaína. — Ele é apenas um gato caolho do rabo comprido e não faz mal a ninguém...

A galera estava se tranquilizando, até que ela decidiu terminar a apresentação:

— ... a não ser às sardinhas que caça para se alimentar.

Voltou a anarquia: peixe subindo em cima de peixe, barbatana batendo em nadadeira, espinha furando escama. Na tentativa de acalmá-los, tirei o sugador de oxigênio da boca e confessei:

— Não se preocupem! Só como sardinha-de-água-doce. Vocês, salgadas, podem me causar pressão alta.

As sardinhas ainda estavam receosas com minha presença, mas puderam perceber, pela honestidade refletida no meu único olho, que eu estava em missão de paz.

— Ufa! Já estava pensando que era mais uma armadilha da Pólvora — uma delas disse.

Perguntei quem era essa, e elas me contaram que Pólvora era a criatura mais terrível do recife das Vinte Mil Réguas Submarinas. Com os oito tentáculos de polvo, ela era capaz de esmagar qualquer um que considerasse inimigo. Todo mundo a temia.

— E se ela fica assustada — disse uma sardinha — joga uma tinta escura na água e deixa quem estiver por perto totalmente cegueta.

— Um dia — disse Janaína — ela estava tão irritada que comeu uma das minhas pontas. Minha sorte é que estrela-do-mar é capaz de se regenerar, e ganhei um braço novo rapidinho.

De repente, toda a reunião de boas-vindas foi interrompida por mais gritos e correria. Pedi para que não fizessem tanta euforia, pois eu era um gato bonzinho; mas não sobrou uma criatura viva próximo dali; até as algas se encolheram atrás das pedras.

Estava chegando à conclusão de que seres marítimos eram medrosos demais, mas, antes de eu confirmar minha hipótese e continuar a caminhada, senti uma gosma gelada, como se fosse um desentupidor de pia, sobre minhas costas. Quando virei o pescoço, havia uma gigantesca espécie arroxeada de polvo fêmea. Ela enrolou um dos tentáculos em mim e murmurou:

— Nunca tive gatos escravos. Espero que você faça um trabalho melhor do que o daquela sereia inútil que aprisiono no calabouço do meu castelo.

Fui levado para o palácio de Pólvora e largado na mesma cela em que estava a sereia de que ela havia falado. A garota-peixe me viu com olhar piedoso e foi conversar comigo, para saber se eu estava bem. Ela se apresentou a mim como Mariana.

Em três minutos de conversa, descobri que Mariana nunca conheceu os pais. Quando o pai dela soube que a mãe dela estava grávida, entrou em seu disco voador e voltou para o planeta de origem. E a mãe, depois do nascimento da pequena sereia, decidiu explorar o litoral do Cabo da Boa Esperança.

(Na verdade, Mariana não sabia bem o que havia acontecido para que os pais se desligassem da vida dela sem deixar recado após o sinal, por isso preferia acreditar que tinha um pai extraterrestre e uma mãe historiadora.)

Nossa conversa foi interrompida, antes de eu dizer quem era. Pólvora me arrancou da prisão para que eu segurasse a antena da televisão do quarto dela — parecia inacreditável, mas a tecnologia submarina era semelhante à que tínhamos em terra.

Enquanto eu colocava um pedaço de palha de aço na ponta, ouvi o jornalista anunciar: “O filho da rainha lula vai se casar!” E acrescentou que o pretendente seria escolhido de uma maneira inusitada: eles visitariam as casas e entrevistariam as interessadas, até que o filho da lula encontrasse um peito em que seu coração se encaixasse.

Pólvora viu, aí, uma ótima oportunidade de se casar, mas sabia que, com a sereia vivendo sob o mesmo teto, seria difícil o filho da rainha prestar atenção no charme roxo dela. Mariana conseguia ser mais bonita, mais simpática, mais carismática e mais apaixonante do que Pólvora sonhava em ser. Então, a vilã decidiu pensar em uma forma de fazer com que Mariana não fosse notada.

Primeiro, pensou em escondê-la no guarda-roupa; mas o lugar era muito apertado, e ela conseguiria abrir a porta, já que não havia trancas. Depois, pensou em prendê-la dentro de uma caixa de contorcionismo; mas sequer havia uma caixa dessas na casa! Então, Pólvora encontrou a ideia de que precisava: transformaria Mariana em um tritão.

— Claro! Se Mariana for um menino, o filho da lula não poderá se casar com ela.

Assim, começou a pensar em voz alta e citou milhares de possibilidades de como poderia fazer isso. Pensou em cirurgia plástica, em maquiagem artística e até em comprar um forno capaz de modificar a aparência das pessoas. Mas tudo era muito caro e complicado, ainda mais para quem estava no fundo do mar. Resolveu que a transformação deveria ser feita passo a passo.

Num momento em que Mariana estava distraída, Pólvora deu início ao plano, despejando um pote inteiro de creme para nascer barba no rosto dela — era um creme potente, feito com couro de peixe-boi, que deixaria as bochechas dela com pelos e faria um bigodão esculachado crescer debaixo do nariz. Mariana tentou se lavar, mas o creme já havia surtido efeito.

Depois, Pólvora preparou um refrigerante especial: misturou um pouco de pó de pérola com água e inseriu um pouco de gás. Mas não era um gás qualquer de refrigerante; era gás hexafluoreto, que faz a voz engrossar. Deu para que Mariana tomasse um gole, e ela virou logo o copo — quando foi falar, a voz saiu como de cantor de ópera.

Na mesma tarde, Pólvora trocou todas as roupas do guarda-roupa de Mariana: tirou os vestidos, os laços e até os sutiãs. No lugar, colocou roupas de tritão. Como se não bastasse, deu um jeito de sujar as roupas que Mariana estava usando, para que, quando a sereia fosse se trocar, tivesse a obrigação de escolher um dos ternos e cartola.

Então, chegou a vez do quarto e último passo, o mais difícil. Pólvora precisaria de um feitiço para permitir que Mariana fizesse xixi de pé. Bastava isso, e se tornaria um tritão perfeito. A vilã retirou um livro velho e medonho de um fundo falso da gaveta de talheres. Era um livro de poções e encantamentos. Na página sobre transformações, ela leu:

“Para que o corpo físico seja transformado, é necessário juntar, numa mesma poção: três gotas de lágrima de golfinho, nove patas de siri torradas e um bigode de gato.”

Os golfinhos, ela arrumaria na costa leste; os siris viviam passando em frente do jardim do palácio; mas o gato... Enquanto ela imaginava onde arrumaria um gato insignificante para arrancar-lhe um bigode, solucei inocentemente e fui descoberto.

Com a poção preparada, Pólvora entrou sorrateiramente no banheiro, onde Mariana tentava dar um jeito de arrancar a barba do rosto. A madama polvo sussurrou para si:

— Preciso dar um jeito de jogar isso na cauda dela rápido, antes que as maldades iniciais percam o efeito.

Antes de conseguir se aproximar de Mariana, entretanto, um barulho de vidro se quebrando assustou Pólvora e fez com que ela derrubasse a poção na privada. Correndo até a sala, ela encontrou Janaína espatifada no chão, mas com uma capa de super-heroína e uma expressão corajosa na face:

— Esta é a hora da estrela... Janaína Star ao resgate! — disse. — Vim salvar meu amigo Miau.

Pólvora havia ficado irritadíssima e pareceu que iria esmagar Janaína com uma tentaculada só, de forma que a pobrezinha nem conseguiria se regenerar depois. Mas um mutirão de sardinhas entrando pela vidraça quebrada a distraiu.

— Resolvemos que não vamos mais ficar caladas — uma delas disse.

— É isso aí! Viemos libertar a Mariana.

A essa altura, Mariana já havia conseguido se barbear; havia encontrado a roupa dela, que estava escondida debaixo da cama; e o gás hexafluoreto já havia perdido o efeito. A sereia já estava normal novamente. Isso fez que com Pólvora desabasse em lágrimas de nanquim.

— Não é justo! Essa garota é tão linda, e eu... eu sou um monstro. Todos a amam, todos a querem como amiga. Mas eu sou a abominação dos mares, e a única chance que eu tinha de me livrar dessa peste e me casar com alguém... essa chance foi perdida.

Enquanto Pólvora desabafava, a campainha tocou. Mariana abriu a porta e recebeu a rainha lula e o filho. No mesmo momento, o rapaz lula exclamou:

— Que moça mais linda!

Mais nanquim foi liberado por Pólvora, o que fazia com que o ambiente ficasse ainda mais opaco, difícil de enxergar.

— Viu? Todos os olhares são voltados para Mariana — a madama polvo disse.

— Mas estou falando de você, roxinha — disse o filho da lula. — Para que vou querer uma sereia, que é metade peixe e metade humana, se posso entrelaçar meus tentáculos nos seus, hein?

Pólvora, que sempre teve inveja da sereia, foi apresentada à beleza própria. Explodiu de tanto contentamento, que jorrou altas doses de nanquim no mar. Ninguém conseguiu ver mais nada. Quando a escuridão passou, a madama polvo e o filho da lula já não estavam mais ali; provavelmente, haviam se mudado para um lugar onde vinte mil réguas não seriam capazes de mensurar o tamanho do amor que sentiam um pelo outro.

Depois disso, dei adeus a toda a peixarada, em especial à Janaína. E voltei para a praia, onde a primeira criatura que encontrei, coincidentemente, foi meu companheiro das serestas.

— Ué, você não disse que queria ser coala?!

— Decidi que quero ser apenas um gato caolho do rabo comprido. Se eu não for isso sempre, não quero ser mais ninguém.

sábado, 18 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Senhor desensorrisado



Vem de mansinho a brisa e me diz
É impossível ser feliz sozinho...
TOM JOBIM, Wave.

A água do rio estava bem cristalina, e eu conseguia enxergar as sardinhas nadando para lá e para cá. Posicionei minha pata direita perto da superfície; assim que um peixinho bobeasse e emergisse para pegar as sementes que caíam da árvore e boiavam tranquilas, eu daria o golpe fatal. No entanto, quando estava chegando o momento exato, fui transportado misteriosamente para uma sala enorme com móveis imensos.

A porta estava entreaberta e percebi quando um pouco de névoa entrou no cômodo; alguns segundos depois, passou um avião. Eu estava em um reino acima das nuvens, num lugar que nem sabia que poderia existir. Enquanto me sentia totalmente fora da realidade, um homem gigantesco e carrancudo reclamava aos berros com uma varinha de condão:

— Eu peço um gato, e você me traz essa porcaria que nem tem olho? E se isso me arranhar?

— Não vou arranhar você — eu disse. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Sabia que eu poderia ser entendido por tudo quanto é tipo de coisa: brinquedos, veículos, corpos celestes e até crianças. Só adulto mesmo é que não me entendia. Mas um gigante... Eu nunca havia visto um gigante de perto, muito menos tentado me comunicar com um; por isso, não tinha certeza de que ele me entenderia. Mas entendeu. Olhou seriamente para mim e falou:

— Eu estou infeliz. E minha infelicidade é proporcional ao meu tamanho. Daí, pedi um gato. Quero que você me faça feliz.

Com meu reles conhecimento de gato, nunca soube que gigante tinha varinha de condão, nem que ela funcionava com palavras mágicas. Mas o gigante me convenceu que, se a Fada Madrinha tinha o bibidi-bobidi-bum, ele poderia ter o fá-fé-fi-fó-fu. Ainda assim, não entendi por que ele havia me chamado, pois eu não sabia em que poderia ajudar. Então, ele me mandou sentar numa caixinha de palito de dentes, que também era proporcional ao tamanho dele, e me explicou:

“Não tem coisa mais chata do que ficar no castelo, sem nada interessante para fazer. Sempre tem um momento em que o videogame perde a graça, que a televisão cai na mesmice e que o computador se torna cansativo. Aí, eu me sento no sofá e me emburro.

“De vez em quando, uma criada ou outra aparece para varrer o tapete ou espanar a poeira dos móveis. Dá uma raiva tremenda quando elas param o que estão fazendo para olhar minha cara e perguntar o que está acontecendo.

“— Gigante Everest, por que está mal-humorado? — dizem.

“— Mal-humorada é a vovozinha! — digo.

“Realmente a Vovó Himalaia tem um humor péssimo, que nem o Vovô Corcovado aguenta. Mesmo assim, era fato que nada mais me fazia sorrir, tanto que acabei sendo apelidado aqui, no reino, de senhor desensorrisado.

“Saber que as pessoas me chamavam daquele jeito só fazia com que meu mau humor aumentasse. Tomei, portanto, uma decisão: iria rir, mesmo que não encontrasse motivo para isso.

“— Ou rirei como uma peste, ou não me chamo Gigante Everest!

“A fala deu até rima! Fui para diante do espelho e fiquei olhando para mim e tentando encontrar algo engraçado. Fiz careta: subi a sobrancelha, entortei os olhos e pus a língua pra fora. Não funcionou. Fiz outra careta, mas o espelho caiu na gargalhada — eu me irritei e o joguei no chão.

“Nem me importei com os famosos sete anos de azar; eu já estava tão mal-humorado que um pouco de má sorte não seria nada absurdo.”

Pessoas felizes podem até falar bastante, mas gente amargurada consegue tecer discursos enormes. Ou talvez isso fosse próprio do gigante, que tinha tudo grande, até a fala! O fato é que minhas orelhas de gato estavam cansadas de tanto blá-blá-blá e resolvi meter o focinho e interromper o pensamento.

— E por que você não pediu para a varinha mágica lhe dar um pouco de felicidade?

— A varinha me traz coisas materiais, mas não pode modificar os sentimentos. Por isso preciso que você me faça ficar rico! Se eu tiver ouro, serei mais feliz.

— Ainda não entendo. Como um gato de rua, pobre e morto de fome como eu, pode fazer com que você enriqueça?

Ele me olhou grosseiro e foi até o armário onde guardava os instrumentos musicais. Pegou uma harpa cor de prata, como se estivesse forrada por papel-alumínio, e me contou:

— Esta harpa prateada é mágica. Assim que ela tocar uma música, o animal que a ouvir passa a botar ovos de ouro.

— Mas não sou galinha e não boto ovo.

— A partir de agora, botará.

A harpa desenvolveu um rosto e braços. Bocejou, espreguiçou-se, abriu os olhos, esticou os braços para trás e começou a tocar. Era uma canção medieval, tipo dessas que aparecem em filmes de reis e rainhas. Mal tive tempo de prestar atenção na música e senti um enjoo, como se algo pesasse no meu estômago. A ânsia foi aumentando, e eu não consegui segurar: fiz força de vômito e golfei um ovo de diamante.

— Ué, isso é diamante! — eu disse. — Você não falou que os ovos seriam de ouro?

— Ah, é que estou acostumado com gansos! É a primeira vez que faço experiência com um gato. Da vez que fiz com coelho, saiu um ovo de chocolate.

Finalmente, alguém me explicou como é que surgem os ovos de Páscoa.

Enquanto eu me recuperava do fato de ter botado um ovo, Everest juntava o pedaço de diamante, que para ele não passava de uma bolinha de gude, e guardava no bolso. 

— Estranho! Não funcionou. Fiquei um pouco mais rico e, mesmo assim, continuo infeliz.

O gigante se chateou ainda mais e foi olhar através da janela do castelo. Resolvi que não podia ficar parado: escalei o corpo dele e me sentei em seu ombro esquerdo, como se fosse um papagaio no ombro de um pirata. Quis saber o que ele estava vendo, e ele me apontou para baixo.

— Veja lá na terra: todo mundo está correndo e se divertindo; só há alegria! E aqui em cima é tudo tão triste.

De lá das nuvens, as pessoas pareciam formiguinhas: os adultos eram saúvas, e as crianças eram operárias, difíceis de enxergar. Se bem que as formigas operárias trabalham, carregando as folhas para o formigueiro, e as crianças apenas brincam, carregando a bola até o campo de futebol.

Everest comentou que queria fazer uma visita a terra e descobrir qual era a origem da felicidade, para colher um pouco para si. Mas suspirou descrente, pois não sabia como fazer para chegar até lá. Então, dei uma sugestão:

— Por que você não usa sua varinha e pede para nascer um pé de feijão, daqui do céu até a terra? Aí, é só descer por ele.

— Pé de feijão? Mas pé de feijão cresce para cima! Se vai ser para baixo, é melhor pé de mandioca, não?

A análise dele fez sentido. Concordei com um ronronar, e ele balançou a varinha, dizendo as palavras mágicas:

— Fá, Fé, Fi, Fó, Fu! Quero que cresça um pé de mandioca, que vai desta nuvem até o chão.

No fim das palavras, a nuvem vibrou e pudemos perceber que uma saliência brotou na parte de baixo. Rapidamente, como um vegetal que foi regado com adubo a jato, as raízes se desenvolveram, com casca marrom e grossa, cheia de saliências, e se esticou até o pasto de uma fazenda.

Continuei no ombro de Everest, enquanto ele descia aquele tronco, como se fosse uma parede de escalada. Por ser gigante, não demorou muito a colocar os pés na grama e quase aterrissar em cima de uma vaca. A primeira atitude de Everest foi arrancar um pouco do mato e colocar na boca. Na primeira mastigada, cuspiu tudo.

— Essa nuvem de vocês tem um gosto horrível! Prefiro a do meu reino, que é feita de algodão-doce.

Enquanto eu explicava que ninguém comia capim — exceto as vacas e outros animais herbívoros, que pareciam se deliciar —, um garoto, que vinha correndo, tropeçou no mindinho do gigante. O grande homem pegou o menino na palma da mão e o levantou para perto do rosto. O menino não mostrava estar assustado, mas dava risada e arregalava os olhos por ver uma criatura fantástica tão de perto.

— Uau! Você é mais alto que o papai.

— E você parece um feijão. Vou chamá-lo de Feijão.

O gigante levantou o garoto pela camiseta e percebeu que os pés de Feijão estavam sujos e descalços. Viu que as calças também já estavam rasgadas e a camiseta não era de tecido muito bom.

— Por que você usa roupas tão velhas? E onde estão seus sapatos?

— Meus pais são pobres. Mal temos com que nos alimentar. A gente vive nessa fazenda, mas é como empregado. E o patrão não deixa nem a gente beber o leite das vacas.

Everest fez cara de confuso; disse que não entendia como um moleque paupérrimo como Feijão podia ser feliz, sendo que, mesmo com todo dinheiro do mundo e uma varinha mágica, ele não conseguia mostrar um sorriso sequer.

— Eu amo o papai e a mamãe. E também amo o campo e amo a vaca. Gosto de tudo que vive comigo, e isso basta para eu achar a vida boa. E você, não ama esse seu gato?

O gigante franziu a testa e voltou o menino ao chão. Então me pegou pelo rabo e me arrancou do ombro dele. Emburrou mais uma vez e começou a revirar os bolsos. Tirou o ovo de diamante que havia guardado e entregou a Feijão.

— Que ovo esquisito! Será que vai nascer um pintinho de vidro?

O garoto saiu correndo com o ovo nas mãos, chamando pela mãe e dizendo que iam ter que forrar o galinheiro com almofadas, para que, se algum pintinho de vidro caísse do poleiro, não quebrasse. Everest via o menino correndo pelo campo e achou engraçado o fato de ser tão inocente.

— Fá, Fé, Fi, Fó, Fu! Quero amar o campo e amar a vaca. O reino acima das nuvens ficará bem sem a minha presença.

Dito isso, a varinha de condão desapareceu, e o gigante foi ficando marrom, da cor da mandioca, e se estendendo para os lados. Em poucos segundos, ele havia se tornado uma montanha. Como não sabia o que fazer, acabei indo embora; mas, algum tempo depois, ouvi comentários sobre uma montanha que levava até o céu. Fiquei sabendo que ninguém havia conseguido escalá-la até o topo, mas alguns alpinistas juravam que a ouviam rir.

sábado, 11 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Alguma coisa sobre pneu



É só você acreditar
Que uma nova estrela vai poder brilhar
ROUGE, Nunca deixe de sonhar.

Eu estava revirando uma lata de lixo, e apenas meu rabo estava para fora, quando ouvi um rosnado. Parei com uma espinha de peixe na boca para ouvir melhor. Os rosnados aumentaram e pareciam vir de três gargantas diferentes. Resolvi sair devagar da lixeira e dei de cara com três rottweilers prontos para atacar. Não tive tempo de pensar em nada; apenas ericei o pelo, dei um miado esganado e larguei na pole-position.

O pôr do sol me deu forças para incorporar um praticante de parkour, com saltos quase quilométricos — até que me encurralei em um beco. Arregacei as unhas para escalar a parede, tijolo por tijolo, e dei dois mortais para cair do outro lado do muro. Vi uma janela aberta e nem me perguntei de onde poderia ser: lancei meu corpo para dentro, de uma forma que causaria inveja até mesmo à Mulher Gato.

— Veja, tia-que-dá-remédio! É um miau.

Olhei para a menina, na cama, com um sorriso apagado no rostinho doente, e também para a mulher, toda de branco e com chapeuzinho de enfermeira. De tantas janelas para pular para dentro, tive a petulância de atravessar a de um quarto de hospital. A enfermeira ficou tão desesperada que apertava descontroladamente o botão para chamar ajuda, enquanto disparava:

— Meu Deus! De onde essa coisa veio, Glorinha? Tem que sair rápido, antes que faça algum mal a você.

— Mas, tia-que-dá-remédio, ele tá dodói também, no olhinho. Ele tem que ficar comigo.

A menina era bem menininha ainda, mas tossia tão forte que até pareciam os latidos dos rottweilers. A enfermeira falava mais alto que a tosse da menina e chamou tanto por socorro que, logo, chegou mais uma enfermeira, outra enfermeira, o segurança do hospital, o médico, a mãe da menina e um paciente que estava no quarto ao lado.

— Eu pego pela barriga!

— Eu seguro as patas, para ele não arranhar.

— Eu tapo o focinho, para ele não morder.

Todo mundo elaborava uma estratégia maluca para me tirar dali — mas bastava que pedissem, e eu sairia. Mesmo assim, esperei para ver o que fariam. Quando uma enfermeira veio de um lado e o segurança veio de outro, a menina berrou, entre as tossidas:

— Parem! Ele é bonzinho. Vejam como balança o rabão.

A mãe e o médico se aproximaram da garota e tentaram fazê-la entender que hospital não é lugar de bicho, que eu poderia estar doente de verdade e que precisaria de um veterinário. Prometeram que me levariam ao veterinário. Mas a menina estava decidida a não me dizer adeus naquele momento.

— Tio-que-ouve-o-coração, lembra que você disse que eu ia dormir bastantão hoje à noite? E mamãe, lembra que você disse que eu podia pedir o que quisesse até o fim do dia? Eu quero o miau.

O médico respirou fundo, e a mãe abraçou a menina para chorar um pouquinho. Todo mundo meio que lacrimejou e entraram no acordo de que o pedido da menina tinha que ser realizado, independente das proibições do hospital. Eu estava com medo dos rottweilers que me esperavam do lado de fora, então, aceitei ficar.

Quando todo mundo saiu, a menina foi para perto da janela, pediu para que eu subisse na cama também, fungou o nariz e me disse:

— Tá vendo aquela estrela? A segunda à direita? Eu disse pra ela que queria um miau, e ela me respondeu, assim, com brilho de estrela, que tava tudo bem. Daí você apareceu.

A menina olhava para a janela como se as estrelas e a Lua fizessem parte de uma família, e isso ficou esclarecido quando ela me contou:

— Sabia que é lá que vou morar quando acordar, depois de dormir bastantão? Foi o tio-que-ouve-o-coração que disse.

— Mas por que é que você vai “dormir bastantão”?

— Eu não sei muito bem... — tosse, tosse, tosse — Mas ouvi quando ele disse pra tia-que-dá-remédio alguma coisa sobre pneu. Ele é bobinho e acha que sou um vrum-vrum.

O sono abriu a boca de Glorinha, que se deitou. Eu também já estava meio cansado de tanto ter corrido, que me encostei ao lado dela. Ela foi fechando os olhos bem devagarinho e começou a ficar com frio. Arrastei o cobertor com a boca para cobri-la, mas parecia que ela já estava dormindo e que era o sono de “dormir bastantão”, que ela falava.

Para não atrapalhar, resolvi ir embora. Vi que a segunda estrela à direita brilhava ainda mais e caminhei tranquilamente, olhando para o céu. Só percebi que estava totalmente distraído quando me esbarrei em patas que não eram minhas. Os dentes afiados do rottweiller sorriram para mim, e isso resultou em um desmaio de gato.

***

Não há nada mais incômodo do que quando estamos dormindo e ficam cochichando na nossa orelha. Eu fazia um esforço felino para abrir os olhos, enquanto ouvia um zum-zum-zum do tipo: “Olha que diferente!”, “Será que anda?”, “Será que voa?”, “Será que morde?” Quando consegui levantar as pálpebras, um punhado de estrelas se assustou, gritou e saiu aos trotes. Uma delas ainda deu voz de comando:

— Corram, antes que ele nos machuque!

— Não vou machucá-las! — eu disse. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

— Um gato? Já ouvi falar em gatos, mas sempre achei que não passasse de contos de fadas — uma estrela comprida disse.

Senti que eu não estava no meu estágio normal; era confusão demais para uma mente de gato desvencilhar. Primeiro, eu estava fugindo dos cachorros; depois, fui brevemente adotado por uma garotinha doente; daí, voltei para a rua e encontrei novamente os cachorros; então, do nada, acordei na Lua, cercado de estrelas que não sabiam o que era um gato.

— Vocês nunca viram um gato antes?

— Não! Não é muito normal aparecer bicho por aqui. O último que vimos foi uma cadela chamada Laika, mas já faz muito tempo.

Alguém já havia comentado dessa tal de Laika comigo, que ela era conhecida por ser o primeiro ser vivo a entrar em uma astronave e ir ao espaço. Mas, como ela era uma cachorra, não quis nem saber muito da história. Queria mesmo era entender o que eu estava fazendo no céu e por que as estrelas estavam tão agitadas.

— Alguma de vocês sabe como vim parar aqui?

— Meu nome é Janaína — uma delas disse.

De repente, todas as outras começaram a se apresentar — Raul! Geórgia! Afonso! Ernestina! Claudete! — e, assim, mudaram de assunto. Com tanto nome vagando na minha cabeça, não aguentei e dei um miado bem esculachado. Todas se calaram, e eu repeti a pergunta.

— Como é que vim parar aqui?

— Quando as pessoas terminam a vida delas na Terra, elas sobem aqui no céu, onde se transformam em estrelas — uma estrela chamada Diana disse. — Agora, o que um gato faz aqui é mistério até para nós. Talvez seja porque você tem alma de humano.

Senti o calorzinho de um cometa que passou ali perto e fiquei pensando se algum deles viria até a Terra para me trazer de volta. Mas não havia rodoviária, e isso me fez concluir que eu teria que passar mais um tempo lá.

— E a Glorinha? — eu disse. — Ela está bem?

— A menina que veio um pouco antes de você? Ela está bem ali.

A estrela apontou para um pedaço da Lua, onde a menina dançava e pulava amarelinha. Quis me aproximar, e ela logo me viu.

— Miau, viu só que bacana? Aquele pneu que o tio-que-ouve-o-coração disse que eu tinha... devia ser pneu de foguete.

Ela começou a dançar, sem tosse nem nariz escorrendo. Fiquei feliz por vê-la curada e, assim que ela saiu rodopiando, perguntei à Janaína (ou talvez fosse Amélia, ou Gislaine, ou Alessandra) por que Glorinha ainda não havia se tornado uma estrela.

— Ela precisa fazer alguma coisa muito boa para virar estrela.

— E como ela fará isso?

— É só ela desejar. O espaço cósmico, que vai desde a segunda estrela à direita e depois sempre em frente até de manhã, é mágico. É só ela desejar, que tudo se realiza.

Fui contar a novidade para a menina, enquanto ela provava um pedaço da Lua, para saber se realmente era de queijo. Ela me respondeu que já virava estrela e me mostrou, dando uma cambalhota. De repente, apareceu uma estrela grande e brilhantíssima, que iluminou os cabelos escuros de Glorinha.

— Glória, jovem menina, seja bem-vinda! Sou a Estrela-Guia, mãe de todas as estrelas e filha do Sol.

— Você também é mãe da estrela-do-mar?

— Apenas das do céu, querida. E você, em breve, será uma de nós. Mas, para isso, precisa fazer uma coisa boa. Basta dizer o que quer e, se as forças cósmicas considerarem uma boa feita, você será transformada.

A menina gostou da ideia e disse que queria brincar. Explicaram que não era uma brincadeira, mas tudo para ela se resumia em diversão.

— Bem, vejamos... Todo mundo aqui poderia falar rimado! Seria uma coisa boa, todos falando que nem música, não seria?

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. Quando uma das estrelas foi perguntar se havia dado certo, a fala saiu em versos:

“Eu, que ouvi o pedido bem de perto
Fiquei na dúvida para saber se deu certo.”

Nisso, outra estrela respondeu:

“Deu mesmo. Que gozado!
Tá todo mundo falando rimado.”

Mas a Estrela-Guia lamentou:

“Infelizmente, esse seu desejo não foi suficiente.
Você não virou estrela e continua sendo gente.”

A menina pensou, pensou e decidiu tentar outra vez:

“Mas eu não me darei por vencida!
Quero que todas as estrelas fiquem coloridas.”

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. O céu ficou parecendo um manto de confetes, com cada estrela de uma cor: estrela bege, estrela verde, estrela vermelha e até estrela cor-de-laranja com bolinhas azuis! Mas a Glorinha continuava menina. A Estrela-Guia repetiu o desabafo:

“Esse seu desejo também não foi suficiente.
Você não virou estrela e continua sendo gente.”

Glorinha não desistiu e tentou de novo. Dessa vez, deixou que os sentimentos falassem por si:

“Neste céu, a gente brinca e a gente dança,
E o miau está aqui, mas tem muito bom coração.
Quero que ele faça bem a mais uma criança;
Por isso, merece voltar, para balançar o rabão.”

A Estrela-Guia deu uma rodopiada, piscou três vezes e consentiu. Chegou para mim e disse:

“Pule no próximo meteorito que passar.
Ele vai cair no seu planeta, em algum lugar.”

Rocei a cabeça nas pernas de Glorinha e recebi um cafuné da garota, em sinal de despedida. Miei para as demais estrelas, que balançaram a ponta direita, para dar tchau. Saltei no meteorito e fiz uma viagem de volta para o lugar de onde vim. Quando aterrissei e olhei para o céu, a segunda estrela à direita da Lua havia recebido uma amiga, pequenininha, cor-de-rosa bem claro, mas muito iluminada.

“Miau, Glorinha!
Descanse em paz, menininha.”

sábado, 4 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Cabeça de papel e coração de lantejoulas



Todo mundo tem um primeiro namorado.
Só a bailarina que não tem.
CHICO BUARQUE, Ciranda da Bailarina.

Os cachorros são animais tão idiotas que, quando veem um carro passar, tratam de correr atrás. Uma vez, cheguei a perguntar para um vira-lata manso qual é o motivo de eles fazerem isso. Ele me respondeu que é o mesmo motivo pelo qual eu me sinto atraído por novelos de lãs e pelo qual a boca das crianças se enche de água quando elas olham para um pedaço de bolo. É um impulso sem explicação.

Mas já reparei que há um carro que eles nunca seguem: o caminhão de gás. Como um gato de rua que já presenciou as histórias mais imprevisíveis, entendo que esse silêncio é uma amostra do respeito que eles têm. Não respeito pelo motorista, nem pela empresa de gás, mas pela musiquinha que é tocada.

Ouvi o tananam pela primeira vez muito antes de os vendedores de gás a utilizarem em seus caminhões. Faz bastante tempo, da época em que eu ainda era filhote e estava me acostumando a enxergar com um olho só. Essa música foi usada no samba-enredo de um Carnaval do qual eu jamais me esquecerei.

Falavam tanto dessa festa noturna cheia de gingado e tamborins, que resolvi participar da folia. Cheguei com antecedência e fiquei no pátio externo do sambódromo. Como eu era apenas um gato, não tinham por que me impedir de ficar naquele espaço; assim, pude conhecer os acessórios carnavalescos antes mesmo de os portões se abrirem.

As alas de todas as escolas de samba ficavam naquele espaço, que diziam ser a concentração. Era arlequim para um lado; colombina para outro e um pierrô interferindo no romance. No meio de tudo, ficavam os carros alegóricos. Imaginei como seria um engarrafamento na marginal com carros enfeitados como aqueles.

Deixei os pensamentos bobos de lado e vi que, no espaço destinado à escola de samba que homenagearia as artes, havia um carro-bailarina. Certamente era o mais bonito dentre todos e o que mais chamava atenção: era quadrado, como uma caixinha de música e, dentro, uma bailarina girava, com uma perna levantada e equilibrando-se na ponta do outro pé.

Cheguei perto para conferir os detalhes e notei que, na caixa, estava escrito “Elisa”. Confirmei que esse era o nome dela quando o carro-pintor e o carro-escritor passaram ao lado e desejaram um bom desfile a ela. (Não, não imaginei o que eles queriam dizer; escutei o que foi conversado! Carro alegórico também fala, mas há tanto barulho em dia de carnaval, que ninguém ouve a voz dos coitados — apenas os gatos, que têm a audição sensível.)

— Quebre a perna! — um deles disse.

— Mas tadinha! Sem a perna, ela não desfila — o outro disse.

— Calma, seu bobo, é só um jeito de desejar boa sorte, antes da apresentação.

Evitei uma risada felina e saltei para ver os outros carros. Havia um carro-onça, na escola de samba que homenagearia os animais; um carro-sereia, na do folclore; e um carro-banana, na das frutas. Mas o que me chamou muito a atenção foi o carro-soldado, que pertencia à ala do exército, em homenagem às forças armadas brasileiras.

O carro-soldado tinha a cabeça feita de papelão, e o corpo era coberto com mantas de chumbo, mas não tinha um nome tão estiloso gravado no peito: era João, simples assim. Não era vestido com o uniforme verde tradicional, mas tinha várias cores em sua roupagem. O colorido lhe dava um ar de beleza e felicidade. Por parecer um arco-íris, alguns se arriscavam a chamá-lo João do Arco.

— Do Arco, esteja apresentável para nosso desfile!

— Às suas ordens, carro-capitão!

Enquanto colocavam as últimas lantejoulas nos botões de sua calça, João esquivou o olhar e avistou, lá longe, o rosto de Elisa. Não conseguiu ver mais do que a região que vai do coque do cabelo ao colarinho do vestido, mas soube que aquele era o carro mais alegórico que já havia visto.

— Os pneuzinhos dela são um charme, não são? — o carro-marinheiro disse.

João preferiu ficar quieto; as bochechas ficaram cor-de-rosa e nem foi preciso salpicar purpurina; o motor bateu mais forte e provocou uma explosão interna de confetes. Elisa havia conquistado nota 10 em todos os quesitos, segundo os sentimentos do soldadinho.

A alguns metros dali, na escola de samba que homenagearia a magia, o carro-feiticeiro assistia à cena de timidez de João e percebeu o olhar apaixonado. Veio em tão alta velocidade que quase me atropelou. Colou no carro-soldado e foi bem direto nas palavras:

— Nem se atreva, Do Arco! Ela já é comprometida. Há tempos, buzinamos um para o outro.

— Mas eu...

— Quebre a perna!

Numa arrancada violenta, o carro-feiticeiro bateu no carro-soldado e arrancou, com toda força, uma das pernas de João. No chão, ficaram apenas os destroços de chumbo, lantejoulas e todos os outros acessórios necessários para confeccionar um objeto carnavalesco.

O susto foi grande em quem viu a cena: os queixos de alguns se descolaram, os cabelos de outros caíram e meu único olho ficou arregalado ao máximo. A vilania do carro-feiticeiro fez com que o soldadinho derramasse uma lágrima de cola e decidisse que não iria mais desfilar.

Tristeza e carnaval não combinam, e o destino sabe disso. Enquanto João se lamentava cabisbaixo, Elisa passou ao lado dele, girando e tocando o tananam de música clássica. João levantou a cabeça a tempo de vê-la se posicionar numa vaga da frente e sorriu.

— Vejam! Ela só tem uma perna e ainda assim vai desfilar.

Ninguém se atreveu a contar a ele que a outra perna da bailarina estava levantada e não podia ser vista. Preferiram manter o alto-astral do soldadinho. Ele se animou tanto que foi até ela e estacionou ao lado, não tão perto, mas perto o suficiente para que o coração festejasse soltando serpentina.

— Carro-bailarina, eu...

— Carro-soldado, eu...

Eles não precisavam nem se falar, pois se entendiam sem dizer uma única palavra. Cornetas soavam na mente oca de João, e borboletas dançavam balé onde deveria ser o estômago de Elisa. O carro-feiticeiro viu a alegria dos dois, ligou o motor e se enfiou no meio, ralando nas laterais. Quis intimidar o carro-soldado:

— Marche, soldado, cabeça de papel! Se não marchar direito, vai preso pro quartel.

Antes que um dos dois pudesse dizer algo, um alarme tocou: era o sinal de que o desfile começaria e que a escola de samba de Elisa seria a primeira. Corri para a arquibancada e fiquei embaixo de um dos bancos. Mesmo com um olho só, conseguia visualizar o começo do desfile e os carros se preparando para entrar.

Enquanto as alas sobre arte sambavam e expunham a coreografia que haviam preparado para a apresentação, o carro-soldado ficou no portão, admirando cada centímetro que o carro-bailarina avançava. Ele não percebeu o carro-feiticeiro se aproximar e cuspir nele algumas gotas de gasolina, na região das costas.

O clima era de muita algazarra no sambódromo: os pandeiros eram estapeados e gritavam de dor, os tambores eram batucados e reclamavam dos cutucões, e a garganta do intérprete latejava de tanto cantar. De repente, houve um silêncio total. Ouviu-se somente a melodia clássica. A canção de Elisa fez todo mundo parar o que está fazendo e prestar atenção na novidade.

Após alguns minutos de desfile, a escola atravessou a avenida e os carros foram para o pátio que ficava na saída. A próxima escola que entrou foi a da magia, com o carro-feiticeiro, todo pomposo e mal-encarado. Vieram outras escolas em seguida e, por último, quando o dia já estava quase amanhecendo, o carro-soldado entrou em cena.

Como era a última escola, resolvi acompanhá-la, andando por baixo dos bancos, até o portão de chegada. Quando João cruzou a linha final, o farol bateu no que não devia ser iluminado: o carro-bailarina descansava sua beleza ao lado do carro-feiticeiro, que também dormia.

O soldadinho decidiu ir para o outro canto do estacionamento e derramou mais algumas gotas de cola. As pessoas já se preparavam para ir embora, mas eu decidi ficar um pouco mais. Passei entre as grades da cerca e fui falar com o João. Quando me viu, ele se assustou e fez um desabafo.

— Servir de cama para um gato de rua era só o que me faltava! Além de ter tido a perna e o coração arrancados, ainda ficarei cheirando a xixi de gato.

— Calma, amigo! Eu não tenho essa intenção, não. Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Disse que já sabia o que se passava e, também, que entendia a aflição dele.

— Ela é a colombina, e você é o arlequim. Ambos estão apaixonados um pelo outro. Mas um pierrô doente de ciúmes quer distanciar vocês dois, em nome da autossatisfação.

Ele dormiu com a minha falação, e eu resolvi ir embora. Já estava com as duas patas dianteiras para fora do sambódromo, quando percebi uma luz se acendendo em meio à escuridão. Olhei para trás e vi que o carro-feiticeiro estava acordado. Ele ligou o motor bem baixo e foi em direção ao carro-soldado.

Pensei que fosse apenas meu sono criando algum tipo de miragem, mas meu único olho enxergava muito bem e viu quando o carro-feiticeiro rangeu vingativo e acendeu um palito de fósforo que fazia parte de seu enfeite.

Sem ter sido contagiado pela alegria do carnaval, ele atirou a chama nas costas do soldadinho, onde anteriormente havia jogado gasolina, e ainda sussurrou:

— Quartel pegou fogo. Do Arco se deu mal!

Dei um miado tão desesperador que o carro-bailarina acordou. O carro-feiticeiro estava se aproximando dela, para entrelaçar suas rodas, mas Elisa o rejeitou, com batidas nervosas, a ponto de amassar uma das arestas da lataria quadrada.

O carro-feiticeiro ficou tão irritado que disparou para fora do estacionamento, e o carro-bailarina se aproximou do carro-soldado a tempo de ver as folhas de chumbo se derretendo e o papelão virando cinzas.

Sem ter como controlar o fogo, Elisa começou a tocar sua música clássica, como marca de despedida. No entanto, o gás, que era o combustível que fazia a bailarina girar, acabou se espalhando e provocou uma explosão.

Os holofotes se acenderam, e os seguranças do sambódromo apareceram, mas os carros, àquela altura, já haviam se queimado totalmente. No chão, restou apenas um coração de lantejoulas carbonizadas.