sábado, 18 de agosto de 2012

UM GATO CAOLHO DO RABO COMPRIDO: Senhor desensorrisado



Vem de mansinho a brisa e me diz
É impossível ser feliz sozinho...
TOM JOBIM, Wave.

A água do rio estava bem cristalina, e eu conseguia enxergar as sardinhas nadando para lá e para cá. Posicionei minha pata direita perto da superfície; assim que um peixinho bobeasse e emergisse para pegar as sementes que caíam da árvore e boiavam tranquilas, eu daria o golpe fatal. No entanto, quando estava chegando o momento exato, fui transportado misteriosamente para uma sala enorme com móveis imensos.

A porta estava entreaberta e percebi quando um pouco de névoa entrou no cômodo; alguns segundos depois, passou um avião. Eu estava em um reino acima das nuvens, num lugar que nem sabia que poderia existir. Enquanto me sentia totalmente fora da realidade, um homem gigantesco e carrancudo reclamava aos berros com uma varinha de condão:

— Eu peço um gato, e você me traz essa porcaria que nem tem olho? E se isso me arranhar?

— Não vou arranhar você — eu disse. — Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.

Sabia que eu poderia ser entendido por tudo quanto é tipo de coisa: brinquedos, veículos, corpos celestes e até crianças. Só adulto mesmo é que não me entendia. Mas um gigante... Eu nunca havia visto um gigante de perto, muito menos tentado me comunicar com um; por isso, não tinha certeza de que ele me entenderia. Mas entendeu. Olhou seriamente para mim e falou:

— Eu estou infeliz. E minha infelicidade é proporcional ao meu tamanho. Daí, pedi um gato. Quero que você me faça feliz.

Com meu reles conhecimento de gato, nunca soube que gigante tinha varinha de condão, nem que ela funcionava com palavras mágicas. Mas o gigante me convenceu que, se a Fada Madrinha tinha o bibidi-bobidi-bum, ele poderia ter o fá-fé-fi-fó-fu. Ainda assim, não entendi por que ele havia me chamado, pois eu não sabia em que poderia ajudar. Então, ele me mandou sentar numa caixinha de palito de dentes, que também era proporcional ao tamanho dele, e me explicou:

“Não tem coisa mais chata do que ficar no castelo, sem nada interessante para fazer. Sempre tem um momento em que o videogame perde a graça, que a televisão cai na mesmice e que o computador se torna cansativo. Aí, eu me sento no sofá e me emburro.

“De vez em quando, uma criada ou outra aparece para varrer o tapete ou espanar a poeira dos móveis. Dá uma raiva tremenda quando elas param o que estão fazendo para olhar minha cara e perguntar o que está acontecendo.

“— Gigante Everest, por que está mal-humorado? — dizem.

“— Mal-humorada é a vovozinha! — digo.

“Realmente a Vovó Himalaia tem um humor péssimo, que nem o Vovô Corcovado aguenta. Mesmo assim, era fato que nada mais me fazia sorrir, tanto que acabei sendo apelidado aqui, no reino, de senhor desensorrisado.

“Saber que as pessoas me chamavam daquele jeito só fazia com que meu mau humor aumentasse. Tomei, portanto, uma decisão: iria rir, mesmo que não encontrasse motivo para isso.

“— Ou rirei como uma peste, ou não me chamo Gigante Everest!

“A fala deu até rima! Fui para diante do espelho e fiquei olhando para mim e tentando encontrar algo engraçado. Fiz careta: subi a sobrancelha, entortei os olhos e pus a língua pra fora. Não funcionou. Fiz outra careta, mas o espelho caiu na gargalhada — eu me irritei e o joguei no chão.

“Nem me importei com os famosos sete anos de azar; eu já estava tão mal-humorado que um pouco de má sorte não seria nada absurdo.”

Pessoas felizes podem até falar bastante, mas gente amargurada consegue tecer discursos enormes. Ou talvez isso fosse próprio do gigante, que tinha tudo grande, até a fala! O fato é que minhas orelhas de gato estavam cansadas de tanto blá-blá-blá e resolvi meter o focinho e interromper o pensamento.

— E por que você não pediu para a varinha mágica lhe dar um pouco de felicidade?

— A varinha me traz coisas materiais, mas não pode modificar os sentimentos. Por isso preciso que você me faça ficar rico! Se eu tiver ouro, serei mais feliz.

— Ainda não entendo. Como um gato de rua, pobre e morto de fome como eu, pode fazer com que você enriqueça?

Ele me olhou grosseiro e foi até o armário onde guardava os instrumentos musicais. Pegou uma harpa cor de prata, como se estivesse forrada por papel-alumínio, e me contou:

— Esta harpa prateada é mágica. Assim que ela tocar uma música, o animal que a ouvir passa a botar ovos de ouro.

— Mas não sou galinha e não boto ovo.

— A partir de agora, botará.

A harpa desenvolveu um rosto e braços. Bocejou, espreguiçou-se, abriu os olhos, esticou os braços para trás e começou a tocar. Era uma canção medieval, tipo dessas que aparecem em filmes de reis e rainhas. Mal tive tempo de prestar atenção na música e senti um enjoo, como se algo pesasse no meu estômago. A ânsia foi aumentando, e eu não consegui segurar: fiz força de vômito e golfei um ovo de diamante.

— Ué, isso é diamante! — eu disse. — Você não falou que os ovos seriam de ouro?

— Ah, é que estou acostumado com gansos! É a primeira vez que faço experiência com um gato. Da vez que fiz com coelho, saiu um ovo de chocolate.

Finalmente, alguém me explicou como é que surgem os ovos de Páscoa.

Enquanto eu me recuperava do fato de ter botado um ovo, Everest juntava o pedaço de diamante, que para ele não passava de uma bolinha de gude, e guardava no bolso. 

— Estranho! Não funcionou. Fiquei um pouco mais rico e, mesmo assim, continuo infeliz.

O gigante se chateou ainda mais e foi olhar através da janela do castelo. Resolvi que não podia ficar parado: escalei o corpo dele e me sentei em seu ombro esquerdo, como se fosse um papagaio no ombro de um pirata. Quis saber o que ele estava vendo, e ele me apontou para baixo.

— Veja lá na terra: todo mundo está correndo e se divertindo; só há alegria! E aqui em cima é tudo tão triste.

De lá das nuvens, as pessoas pareciam formiguinhas: os adultos eram saúvas, e as crianças eram operárias, difíceis de enxergar. Se bem que as formigas operárias trabalham, carregando as folhas para o formigueiro, e as crianças apenas brincam, carregando a bola até o campo de futebol.

Everest comentou que queria fazer uma visita a terra e descobrir qual era a origem da felicidade, para colher um pouco para si. Mas suspirou descrente, pois não sabia como fazer para chegar até lá. Então, dei uma sugestão:

— Por que você não usa sua varinha e pede para nascer um pé de feijão, daqui do céu até a terra? Aí, é só descer por ele.

— Pé de feijão? Mas pé de feijão cresce para cima! Se vai ser para baixo, é melhor pé de mandioca, não?

A análise dele fez sentido. Concordei com um ronronar, e ele balançou a varinha, dizendo as palavras mágicas:

— Fá, Fé, Fi, Fó, Fu! Quero que cresça um pé de mandioca, que vai desta nuvem até o chão.

No fim das palavras, a nuvem vibrou e pudemos perceber que uma saliência brotou na parte de baixo. Rapidamente, como um vegetal que foi regado com adubo a jato, as raízes se desenvolveram, com casca marrom e grossa, cheia de saliências, e se esticou até o pasto de uma fazenda.

Continuei no ombro de Everest, enquanto ele descia aquele tronco, como se fosse uma parede de escalada. Por ser gigante, não demorou muito a colocar os pés na grama e quase aterrissar em cima de uma vaca. A primeira atitude de Everest foi arrancar um pouco do mato e colocar na boca. Na primeira mastigada, cuspiu tudo.

— Essa nuvem de vocês tem um gosto horrível! Prefiro a do meu reino, que é feita de algodão-doce.

Enquanto eu explicava que ninguém comia capim — exceto as vacas e outros animais herbívoros, que pareciam se deliciar —, um garoto, que vinha correndo, tropeçou no mindinho do gigante. O grande homem pegou o menino na palma da mão e o levantou para perto do rosto. O menino não mostrava estar assustado, mas dava risada e arregalava os olhos por ver uma criatura fantástica tão de perto.

— Uau! Você é mais alto que o papai.

— E você parece um feijão. Vou chamá-lo de Feijão.

O gigante levantou o garoto pela camiseta e percebeu que os pés de Feijão estavam sujos e descalços. Viu que as calças também já estavam rasgadas e a camiseta não era de tecido muito bom.

— Por que você usa roupas tão velhas? E onde estão seus sapatos?

— Meus pais são pobres. Mal temos com que nos alimentar. A gente vive nessa fazenda, mas é como empregado. E o patrão não deixa nem a gente beber o leite das vacas.

Everest fez cara de confuso; disse que não entendia como um moleque paupérrimo como Feijão podia ser feliz, sendo que, mesmo com todo dinheiro do mundo e uma varinha mágica, ele não conseguia mostrar um sorriso sequer.

— Eu amo o papai e a mamãe. E também amo o campo e amo a vaca. Gosto de tudo que vive comigo, e isso basta para eu achar a vida boa. E você, não ama esse seu gato?

O gigante franziu a testa e voltou o menino ao chão. Então me pegou pelo rabo e me arrancou do ombro dele. Emburrou mais uma vez e começou a revirar os bolsos. Tirou o ovo de diamante que havia guardado e entregou a Feijão.

— Que ovo esquisito! Será que vai nascer um pintinho de vidro?

O garoto saiu correndo com o ovo nas mãos, chamando pela mãe e dizendo que iam ter que forrar o galinheiro com almofadas, para que, se algum pintinho de vidro caísse do poleiro, não quebrasse. Everest via o menino correndo pelo campo e achou engraçado o fato de ser tão inocente.

— Fá, Fé, Fi, Fó, Fu! Quero amar o campo e amar a vaca. O reino acima das nuvens ficará bem sem a minha presença.

Dito isso, a varinha de condão desapareceu, e o gigante foi ficando marrom, da cor da mandioca, e se estendendo para os lados. Em poucos segundos, ele havia se tornado uma montanha. Como não sabia o que fazer, acabei indo embora; mas, algum tempo depois, ouvi comentários sobre uma montanha que levava até o céu. Fiquei sabendo que ninguém havia conseguido escalá-la até o topo, mas alguns alpinistas juravam que a ouviam rir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário